quinta-feira, junho 16, 2005

Europa, Europa

A gente as vezes até esquece, tão preocupados que estamos com o que está acontecendo com o nosso grande irmão do norte e com nossos países vizinhos de acompanhar as transformações políticas por que vem passando o Velho Continente. Por um lado as coisas lá parecem acontecer de forma mais lenta e estável, por outro parece ser tão distante daqui que é difícil vermos como podemos ser afetados. Mas motivos para acompanhar a política européia não faltam. Não só porque a União Européia como um todo tem uma economia e população maior do que a americana e é o maior mercado importador de produtos brasileiros. Também não só porque o que acontece na Europa tem impactos sobre a geopolítica internacional que, direta ou indiretamente acaba afetando a nós. Mas acho que em grande medida porque a Europa é, ao menos desde o pós-guerra, amplamente vista como um paradigma alternativo ao americano de como se conduzir política econômica, social, diplomática etc. É um paradigma que muitos de nós institivamente preferimos por dar mais importância à igualdade de oportunidade e ao uso de soluções negociadas para conflitos internacionais. Para muitos de nós, a Europa é o nosso modelo favorito de civilização. O sucesso ou não do paradigma europeu é portanto insumo fundamental para confirmar ou não nossa visão não só do que é desejável, mas do que é possível.

E o fato é, que a Europa está em crise. A crise econômica é velha conhecida, e por isso mais dolorosa. No entanto, o mais interessante é que essa crise econômica é localizada principalmente nos grandes países do continente, isso é, exclui a Inglaterra e Irlanda, os países Escandinavos, Portugal, Grécia etc. É principalmente um problema alemão e francês, mas também espanhol e (se não me engano) italiano. O principal sintoma da crise são altíssimas e persistentes taxas de desemprego. O caso com o qual tive mais contato nas últimas semanas foi o caso alemão, sobre o qual vou me estender. A visão que estou dando aqui é principalmente o que me foi passado por um ex-colega meu de mestrado, o Thomas, que hoje trabalha na KfW, banco de desenvolvimento alemão (ele coordena projetos de água e esgoto na Sérvia e na Bósnia). É um cara bem politizado (membro do partido verde alemão há 10 anos) e chegou a trabalhar um bom tempo com questões de desemprego quando estava na faculdade/mestrado. Enfim, é uma pessoa bem informada, apesar de não ser propriamente um especialista no assunto.

A primeira coisa que me disse o Thomas, é que a principal causa da crise econômica alemã foi a reunificação. Pelo pouco que andei conversando com outras pessoas, isso parece ser mais ou menos consensual. A história é mais ou menos a seguinte: Os núcleos históricos de industrialização na Alemanha Oriental foram todos desmontados após a reunificação, pois se baseavam em tecnologias absolutamente obsoletas para uma economia de mercado. Isso eliminou o tipo de economias de aglomeração que costumam criar, manter e permitir a ampliação de núcleos regionais de produção industrial. Com o desemprego e a falta de perspectivas, os profissionais mais qualificados, bem como os jovens com mais energia e motivação migraram para Alemanha Ocidental, onde as oportunidades eram imensamente melhores. A Alemanha Oriental ficou assim desprovida tanto do seu capital físico quanto humano. A resposta adotada foi a de se realizar grandes transferências da parte ocidental para oriental. Segundo o Thomas, essas transferências prejudicam também a economia na parte ocidental, ainda mais porque elas são em grande parte financiadas como encargos sociais, que incidem sobre os salários, encarecendo assim a mão de obra e contribuindo para o desemprego.

Aliás, o mercado de trabalho na Alemanha é um capítulo aparte. A gente fala da nossa legislação trabalhista, mas na Alemanha a coisa chega a um nível que a gente não faz idéia. O Thomas depois de trabalhar por dois anos na KfW conquistou estabilidade de emprego. Isso significa que ele só pode ser demitido por justa causa ou se a KfW tiver em uma situação muito ruim. Ele basicamente tem emprego garantido pelos próximos 35 anos. Isso é o regime no setor privado! Além do custo das transferências para a Alemanha Oriental há que pagar as aposentadorias. Na Alemanha ao se aposentar todo trabalhador ganha 80% do salário. Com uma parcela cada vez maior da população aposentada vai ficando cada vez mais difícil um sistema tipo Pay-As-You-Go como eles têm lá financiar isso. E mais uma vez, isso aparece como imposto sobre salários. Esses problemas são também compartilhados pela França e outros países do continente. De novo segundo esse meu amigo, os países da Europa podem ser dividos em três tipos. Os do tipo Inglês, sem grande Estado de Bem Estar Social, os do tipo Alemão e Francês, com um grande Estado financiado principalmente por imposto sobre salários, e os do tipo Escandinavo, onde a arrecadação de impostos se dá principalmente por Impostos sobre Valor Agregado (VAT). Os que parecem estar em maior dificuldade são os do segundo tipo, que tem como base de financiamento uma maior distorção do mercado de trabalho.

Isso tudo é pelo lado da oferta. Pelo lado da demanda um dado interessante é que as exportações alemães tem crescido bastante ultimamente, de modo que o custo da mão de obra não tem gerado exatamente um problema de competitividade. Mas a demanda interna continua fraca, o que não é de se surpreender dadas as altas taxas de desemprego. Em suma, o mecanismo parece ser dos encargos sobre mão de obra afetando o emprego, afetando a demanda interna, afetando a economia. Bem keynesiano. Mas política de gastos não resolve. Tem que ser política de rearrumação dos impostos para diminuir as distorções. Pelo menos esse é o diagnóstico do Thomas.

A crise política teve sua manifestação mais dramática com o "Non" francês, mas também vem aparecendo em outros lugares. Na Alemanha mesmo houve uma importante reviravolta política nessas semanas, com a perda do estado de Nordheim Westfallen, o estado mais populoso, industrializado e social democrata do país para os Democratas Cristãos (CDU), o partido conservador. O Schröder resolveu antecipar as eleições (para o qual ele vai precisar fazer umas bandalhas, mas isso é detalhe) e tá parecendo que o CDU vai ter a maioria e pela primeira vez a Alemanha vai ter uma primeira ministra mulher, a Angela Merkl, que já vem sendo comparada à Margareth Tatcher. De volta para a França, o "Non" foi amplamente interpretado como uma manifestação de insatisfação com o governo Chirac, mas pelo menos na visão das pessoas com quem conversei lá a questão é mais profunda. Em Paris estive com uma amiga, a Marie, que é historiadora, bem politizada e bem de esquerda. É também uma representante da elite francesa e bastante idealista, mas em todo caso me foi capaz de apresentar uma discussão bem mais sofisticada das causas do "Non". Basicamente, segundo ela, tem a ver com uma crise de representatividade. O projeto Europeu foi um projeto todo conduzido de cima para baixo, com pouca ou nenhuma legitimação popular. Em particular, na França estavam todos nervosos com a entrada simultânea de 10 países do leste Europeu, decisão bastante drástica que foi tomada de forma tecnocrática. O "Non" seria uma reação a essa forma de se fazer as coisas, de dizer que não podem os eurocratas acharem que tomam as decisões e as pessoas depois sancionam.

Num nível mais específico, a constituição tinha muitos problemas. A constituição foi primeiro de tudo como uma consolidação dos tratados da União Européia, que são basicamente tratados econômicos. Isso fez dela um documento bastante pesado e complexo, e que cristaliza princípios de política econômica contrários ao que os franceses praticam. No entanto, a importância da constituição era principalmente porque ela previa formas de tomada de decisão que não exigiam mais unanimidade dos países da União, além de prever a existência de uma política externa comum. A sensação que se tinha era que estavam tentando empurrar junto com esses avanços políticos, regras econômicas com as quais os franceses não estavam de acordo. O documento foi rejeitado na França numa votação com participação de 70% do eleitorado, numa campanha onde os principais partidos e a grande imprensa favoreceram o "Sim".

As perguntas para a discussão são as seguintes: No ponto de vista econômico/social: o modelo Europeu tem futuro? Qual é esse futuro? Porque ele vem falhando? No ponto de vista político: Como fazer um projeto de União Européia que tenha ampla legitimidade popular, permita a integração de países do leste mas não seja refém da democracia direta? E trazendo a discussão de perto pra nós (e pro início do texto): Esses desenvolvimentos podem afetar a gente do ponto de vista econômico ou político? E por fim, em que medida o Brasil pode se inspirar no modelo Europeu (em especial no modelo continental europeu) para conduzir suas políticas econômica, social e externa?

4 Comments:

Blogger Dimitri Joe said...

Como foi o cara que escreveu, dessa vez eu consigo ser o primeiro. Bem, o post é bastante amplo, tem muito pano pra muita manga aí. Vou deixar aqui as primeiras impressões, e o que e veio à cabeça na primeira leitura.

1. Em primeiríssimo lugar, tenho que contradizer o Felipe quando ele afirma que na Europa há mais igualdade de oportunidades do que nos EUA. Apesar de não haver consenso, vários estudos mostram o contrário (dois desses, e que eu gosto da metodologia, são Benabou & Ok [NBER, 2001] e Ichino et al [JPE, 1999]); a exceção fica geralmente a cargo dos países nórdicos. Especificamente em relação à Alemanha, cada estudo mostra uma coisa diferente, dependendo da metodologia adotada. Mas o ponto é que a desigualdade de oportunidades tende a ser maior na Europa do que nos EUA, ainda que este seja mais desigual em termos de resultados, em cada ponto do tempo.

2. Concordo que para muitos de nós - leia-se, a elite - o modelo europeu é o ideal. E isso não é de hoje, muito pelo contrário. A influência européia no pensamento da elite brasileira foi muito mais forte lá pelos idos do século XIX (enfim as aulas do Lessa de algo serviram... ;) ). Acredito que muito do nosso subdesenvolvimento, de que tratou o Sérgio, venha daí: de uma elite deslumbrada com a Europa, e que teima em tratar temas e problemas tupiniquins sob uma ótica puramente européia.

3. Adoraria falar sobre as várias crises pelas quais a Europa passa. Mas acho que o André Wagner poderia fazer muito isso melhor que eu. Tem um livro que ele me deu pra ler, "La France qui Tombe" (A França que cai) que dá uma visão bastante sólida das origens da crise francesa. O argumento básico é a França vem implementando, desde a Revolução de 1789, suas mudanças litaralmente "aos trancos e barrancos"; são mudanças bruscas, que rompem com toda a ordem estabelecida, seguidas de períodos de intenso conservadorismo. Não vou me aprofundar nesse ponto (se o AW o fizer, seria ótimo), mas penso que este seja um bom prisma para analisar as opções dos frances de uma maneira geral.

Especificamente sobre o non, queria notar duas coisas. Outro dia vi uma francesa analisando o non, tirando a seguinte conclusão: o ponto positivo de todo o processo que levou ao non é que as pessoas discutiram o assunto intensamente, nas famílias, nos bares, nas escolas, todo o papo era sobre o referendo. Isso de certa maneira mostra um turning point nessa coisa que o Felipe bem notou, de que as mudanças na Europa estavam passando cada vez mais com menos discussão pública, popular. Em segundo lugar, temos que notar que 45% dos votantes votou pelo oui: a vitória do non foi apertada. Além de Chirac, temos que levar em conta a crise econômica atual na França: em suma, se o país estivess com a taxa de desemprego abaixo dos 5% e com o PIB crescendo acima dos 3 ou 4, dificilmente o non ganharia.

4. Antes de falar sobre a Alemanha, tenho que consultar as minhas bases (se o Jeferson faz, pq não eu?.. :))
Mas por enquanto posso dizer que a coisa lá é bem louca mesmo: em Berlin rola um boato que um bairro da cidade (Neu Koln), se isoladamente considerado, é a região mais pobre da Europa Ocidental: um conglomerado de algo perto de 100.000 desempregados.

5. As perguntas para discussão ficam para o próximo comentário, mas acredito que neste estejam delineadas algumas respostas.

16/6/05 11:23 PM  
Blogger Felipe said...

1. Bom, talvez eu tenha sido impreciso ao falar de desigualdade de oportunidade ou invés de resultado, mas de toda forma o importante não é tanto o que se observa empiricamente (apesar de, mesmo sem ver os artigos, achar os resultados meio suspeitos) mas os valores que norteiam a condução de política econômica e social. O próprio Benabou tem um paper teórico falando disso.

Talvez o resultado seja o contrário do desejado, ou talvez sem essas políticas a Europa teria ainda mais desigualdade de oportunidade e os EUA conseguem ter menos apesar de não terem essas políticas, e isso pode ser uma direção para o debate. Tem também que dar uma olhada mais cuidadosa na metodologia desses papers, não me parece que igualdade de oportunidade seja algo fácil de medir...

2. Será que você poderia desenvolver nesse ponto? Exatamente por que você acha que a tentativa de implantar um modelo Europeu aqui teria fracassado? Porque o modelo Europeu é ruim ou porque é inadequado para um país como o Brasil?

3. 55X45 não é uma vitória apertada para uma eleição em países europeus, nos quais as posições políticas são razoavelmente estáveis e cristalizadas. Quando estava lá estava se falando de uma derrota acachapante. Em todo caso botar a culpa na política interna e na conjuntura é justamente o que os defensores do "Sim" estão fazendo para não ter que lidar com o problema. E por fim, mesmo que isso tenha tido um peso, talvez se o projeto europeu fosse mais popular ele não seria identificado com os problemas econômicos e políticos da França. Pra não dizer que, dada a performance na França nos últimas décadas, essas taxas de crescimento e desemprego que você falou são absolutamente utópicas. Não está se falando de flutuação conjuntural, mas de problemas econômicos estruturais.

17/6/05 12:17 PM  
Blogger Felipe said...

Sobre Itália pouco ou nada sei. Se o André Wagner puder dar umas idéias, seria muito benvindo!

Laura: Sua análise coincide com o que ouvi por lá. Essa minha amiga francesa chegou a ponto de sugerir que a expansão explosiva da UE foi apoiada pela Inglaterra pois esta estaria interessada em enfraquecer a UE enquanto projeto político e fazer dela apenas um projeto econômico. Talvez um pouco de exagero, mas se você olhar o debate interno na Inglaterra e a cabeça das pessoas lá, não é de todo implausível.

Sobre modelo americano vs. modelo europeu. Um argumento que já escutei é que independente se o modelo europeu funciona bem ou não na Europa, o Brasil teria mais a aprender como modelo americano, pois os EUA é um país mais parecido com o Brasil do que os países europeus, em especial se levarmos em conta a extensão territorial, diversidade étnica e econômica etc. Enfim, algo a se pensar...

22/6/05 12:28 PM  
Blogger Felipe said...

Saiu um artigo na New York Review of Books dessa semana sobre os referendos na França e na Holanda, União Européia, integração pro leste, relações com os EUA etc. Tá interessante e bem escrito, vale a pena dar uma olhada.

O link é http://www.nybooks.com/articles/18117#fn5

24/6/05 5:20 PM  

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